quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Falando sobre Racismo

O "VIVER A VIDA" DE UMA MULHER NEGRA NO HORÁRIO NOBRE

Marco Túlio de Urzêda Freitas



Como noveleiro de plantão, desde o início do ano venho acompanhando os preparativos para a estréia de Viver a Vida, a nova novela de Manoel Carlos. Apesar de ser fã do autor, pois para mim seus diálogos são mais verdadeiros e menos ... convencionais do que os de outros nomes da teledramaturgia nacional, devo confessar que o que mais me alegrou foi saber que desta vez teríamos uma Helena mais jovem e negra na telinha. Há quem diga que isso não significa nada, alegando que “tanto faz a cor da personagem”. Afinal de contas, “no Brasil não há racismo; as pessoas são todas iguais e frutos de uma linda mistura”. Contudo, se analisarmos atentamente a situação das pessoas negras no Brasil, veremos que ter uma mulher negra no horário nobre significa muito; mais até do que poderíamos imaginar.


Primeiro capítulo da novela. Taís Araújo, a atriz escolhida pelo próprio Maneco para dar vida a mais uma de suas heroínas, aparece linda e de cabelos longos, encaracolados, volumosos e soltos. Que imagem maravilhosa! Na verdade, algo exótico e ... muito diferente do padrão de beleza com o qual estamos habituados/as; claro, se levarmos em consideração o fato de que a televisão, as revistas, os jornais e demais meios de comunicação tendem a colocar o estilo branco como sendo a única possibilidade estética de sucesso e, por incrível que pareça, de aceitação e até mesmo de felicidade. Aliás, talvez eu esteja sendo um pouco radical, pois muitos catálogos de moda costumam trazer a imagem de uma mulher negra e de cabelos crespos ao lado ou no meio de algumas outras mulheres brancas, de olhos mais claros e de cabelos ... extremamente lisos. Um belo prêmio de consolação, não é mesmo? Resultado?! Nenhum/a brasileiro/a quer ter cabelos encaracolados ou crespos, visto que o mercado requer pessoas de boa aparência, o que significa, entre outras coisas, ter cabelos escorridos ou levemente ondulados nas pontas. O que isso quer dizer? Infelizmente, para a grande maioria dos/as brasileiros/as, nada. Tudo não passa de uma tendência. Algo normal. Poucos/as são aqueles/as que enxergam nessa ditadura do cabelo liso uma espécie de violência ao corpo e, principalmente, à subjetividade humana.


Sendo assim, por mais que muitas pessoas discordem, eu acredito que a imagem dessa nova Helena pode, ainda que timidamente, produzir efeitos positivos em âmbito social. Só para se ter uma ideia, mesmo não concordando ou achando feio, milhões de telespectadores/as serão obrigados/as a se deparar com a figura de Taís Araújo todas as noites na pele não de uma empregada doméstica, como temos visto acontecer com várias atrizes negras no Brasil, mas na de protagonista de uma novela das oito. E isso, meus/minhas amigos/as, é fa-bu-lo-so! Uma verdadeira subversão de paradigmas. Em outras palavras, o cabelo de Taís, que aqui representa o cabelo das pessoas negras, pode saltar da posição de estilo subalterno para padrão de beleza. Entretanto, para que isso ocorra, não é preciso que todos/as comecem a repudiar os cabelos lisos. Não é isso! A questão é que, ao se depararem dia após dia com a imagem dessa Helena negra e de cabelos encaracolados, muitas mulheres e homens negras/os e brancas/as comecem a enxergar a beleza que existe nos cachos e no volume desse cabelo sociohistoricamente tachado como feio, inadequado, de má qualidade ou simplesmente ... “ruim”. Trata-se, portanto, de perceber o belo de outras formas e, assim, tomar consciência de que toda padronização, por mais simples e convencional que seja (ou pareça ser), acaba sendo discriminatória e desumanamente opressiva.



Nessa mesma linha de raciocínio, já que estamos falando do “viver a vida” de uma mulher negra no horário nobre, acho que não seria correto ignorar os conflitos vividos por essa Helena tão fora dos padrões impostos pela mídia. A princípio, devo reconhecer outro ponto positivo da nova trama de Manoel Carlos: mostrar uma mulher negra bem sucedida, que batalhou muito e superou muitos preconceitos para chegar aonde chegou. Afinal, venhamos e convenhamos que ser mulher e negra no Brasil não é nenhuma vantagem. Os relatórios do IPEA que o digam! No entanto, é válido observar que entre os vários conflitos que permeiam a vida de Helena, um se sobressai: o aborto que ela fez para garantir um contrato de trabalho como modelo. E agora, José?! Que tipo de Helena é essa (leia-se, heroína) que conquista o sucesso a partir da morte de um filho? Claro, em nome de Deus e dos princípios de vida propagados pelo “cristianismo”, nessas horas todo mundo se acha no direito e no dever de apontá-la como aquela que matou o próprio filho, alegando que a decisão de uma mulher pelo aborto se configura como algo imperdoável. Sendo negra, então ... nossa, mas que absurdo! Quem ela pensa que é?


Sinceramente, após refletir sobre os eventos que motivaram e sucederam a tragédia ocorrida com Luciana, personagem de Alline Moraes em Viver a Vida, me faço as seguintes perguntas: Por que justo nesta novela Maneco fez tanta questão de uma atriz negra? Será que a sua escolha por Taís Araújo não foi, de alguma forma, influenciada pela categoria raça? Bem, na posição de um mero telespectador, ouso propor algumas reflexões a partir de três cenas que considero mais ... problemáticas: a conversa entre Tereza, mãe de Luciana, interpretada por Lilia Cabral, e Helena; a discussão entre Helena e Luciana momentos antes de elas partirem de volta para o Brasil; e o “acerto de contas” entre Tereza e Helena, que aconteceu logo após a divulgação do diagnóstico de Luciana. Na primeira, temos a figura de uma mãe que pede à mulher de seu ex-marido para cuidar de sua filha e a de uma madrasta que aceita ser a mãe-postiça de sua enteada. Na segunda, temos a imagem de uma garota mimada que leva uma bofetada da madrasta e a de uma madrasta profundamente ofendida por sua enteada. Por fim, na terceira, temos a figura de uma mãe fragilizada pela situação de tetraplegia da filha e a de uma madrasta que leva uma bofetada no rosto após se ajoelhar para pedir perdão pelos transtornos que ela acredita ter causado a sua enteada.


Em síntese, é possível afirmar que essas três cenas apontam para o fato de que Helena não conseguiu ser a mãe-postiça (ou, como diz uma velha amiga, ser a “mãe preta”) de Luciana. Por esse motivo, com vistas a um melhor entendimento de minhas indagações, proponho uma análise do que aconteceu durante a viagem das duas modelos à Jordânia. Primeiro, venhamos e convenhamos que Helena foi um poço de maturidade e paciência por ter aturado aquela garota mimada durante tanto tempo. E outra, duvido que alguma mulher que se arrependa de ter feito um aborto não reagisse da forma como Helena reagiu diante de uma ofensa do porte da que foi proferida por Luciana. Muito bem feito para ela! Entretanto, não tenho dúvidas de que o que mais pesou nessa sequência de eventos que sobrevieram à fatalidade ocorrida com a personagem de Alline Moraes foi a cena em que Tereza, uma mulher branca, não apenas reforçou a ideia do aborto de Helena como sendo algo imperdoável, como também se achou no dever e no direito de esbofeteá-la e de reiterar o insulto proferido pela filha, dizendo que agora ela teria que “tentar ser feliz com seus dois crimes”: o aborto e o acidente de Luciana.


Na minha opinião, essa bofetada representa muito mais do que a rivalidade entre duas mulheres; ela resgata, simbolicamente, nossa triste história de subserviência, autoritarismo e exploração. Em outras palavras, o que as mulheres negras merecem? Resposta: so-fri-men-to! Mas não estou dizendo que, ao escolher Tais Araújo para viver mais uma de suas heroínas, Manoel Carlos tenha pretendido reiterar discursos de dominação contra as pessoas negras; pelo menos não conscientemente. No entanto, há de se considerar que a simbologia desse tapa que Tereza deu em Helena nos remete, sim, ao período de escravidão no Brasil. E o que mais me instiga a fazer tais apontamentos é o fato de que nenhuma das outras Helenas criadas pelo autor, a saber, todas vividas por atrizes brancas, sofreu tanto e foi tão humilhada quanto a protagonista de Viver a Vida. Tudo bem, são níveis diferentes de sofrimento, mas nenhuma delas teve que se humilhar a ponto de receber um tapa no rosto como resposta a um pedido de perdão. Talvez por isso muitos homens e mulheres que, como eu, não conseguem mais dizer “sim” às práticas de um sistema culturalmente racista, tenham visto nessa cena a figura de uma mulher negra, “habitante da senzala”, que foi punida por sua “senhora”, uma mulher branca, bem vestida e que mora na “casa grande”. Outra vez, devo ressaltar que Maneco provavelmente não fez tudo isso de caso pensado; muito menos pretendeu colocar a mulher negra em uma posição de subalternidade. Contudo, penso que mesmo acreditando nas suas “boas intenções”, é interessante que não desconsideremos os elementos simbólicos que emergem da sua tão comentada “história de superação”. Afinal, a grande maioria dos discursos reproduzidos pelo ser humano, inclusive aqueles de viés racista, advém do que se convencionou chamar de “natural”, “correto” e “apropriado” nas relações sociais; portanto, ao fazê-lo, estamos simplesmente reproduzindo o que fomos educados/as para reproduzir: a diferença, o preconceito e a discriminação.


Para concluir, gostaria de dizer que da proposta de afirmação do cabelo crespo aos conflitos vividos pela personagem de Taís Araújo em Viver a Vida, continuo acreditando que ter uma mulher negra no horário nobre significa muito. A questão é como a vida dessa mulher tem sido apresentada aos/às telespectadores/as. Na última semana, por exemplo, tive uma conversa com alguns/algumas amigos/as sobre a novela. Eles/as disseram que Helena “estava se apagando na história” e que o lugar de protagonista estava sendo aos poucos tomado pelas atrizes Alline Moraes e Lilia Cabral. Nossa, mas isso foi um tapa na minha cara! Como isso poderia estar acontecendo? Será que a presença (leia-se, representatividade) dessa nova Helena se limitava mesmo ao aborto e à culpa pelo acidente ocorrido com Luciana? Do fundo do meu coração, espero que essas ideias não se confirmem, pois não considero justo que algumas pessoas continuem achando que o talento de Taís Araújo se restringe a sua interpretação como a "tinhosa" e sexualizada Xica da Silva. Afinal de contas, que mudança queremos para o Brasil? Ou melhor, o que precisa ser mudado? Qual é o papel da mídia no combate aos diversos tipos de opressão, entre as quais se destaca o racismo? É dever de uma novela reproduzir o discurso de que o aborto é errado e de que a mulher negra sempre é culpada pelas desgraças da humanidade? Por que o viver de uma mulher negra tem que ser mais penoso do que o de uma mulher branca? Essas são questões que considero importantes para uma reflexão posterior à leitura deste texto. No que se refere aos próximos capítulos da novela, continuemos esperando, esperando e esperando ... por algo mais crítico e socialmente relevante, assim como as pessoas negras têm esperado, dia após dia e, na maioria das vezes, em silêncio, por sua verdadeira libertação.




Abaixo segue um texto, em inglês, escrito por Glena Roberts. Trata-se da opinião de uma mulher negra sobre a libertação dos cabelos. Muito interessante!




Straightening our Black Hair is More than a Style Preference

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Glenor Roberts

Hannah Pool suggested that when an African woman straightens her hair it is simply a "hair choice", and has nothing to do with self-hatred or shame about her ethnicity (Going straight, 18 September).


I am a 52-year-old Caribbean-born African woman who understands that, as an elder, what I do and how I represent myself can influence younger people. I have always worn my hair naturally – now in Nubian locks – and I like my hair. I work with young people who are desperate to see positive images of themselves in order to build a strong identity.


Pool quotes soul singer Beverley Knight, who says about her straightened hair that she would find it "insulting, degrading and malevolent" if it was thought she was in some way ashamed of her ethnicity. Of course, it is OK to choose to have your hair that way. I would only ask: what about the millions of black kids watching, wishing to emulate your success, seeing the erosion of that aspect of your African-ness alongside the image of your success?


Pool acknowledges: "It's not just black women who wear weaves. But the big difference is that when white women pile on the extensions, no one accuses them of self-hatred, of trying to be something they are not." She also understands the "seduction" of straight hair. It would have been helpful therefore to ask those she interviewed about how they have constructed their self-image, and to explore the messages black people in the public eye could be communicating to others.


An African friend of mine already has her five-year-old wearing extensions, telling me that it looks "nicer". In my 11-year-old niece's school there is not one black girl who shows her natural hair. Pool had her "straight-hair moment" and "didn't hate it; in fact … rather liked it … It even swished from side to side". It is true that for some people – as it did for Pool – wearing an afro might say "I'm confident enough to wear my hair as it comes". For many others, wearing hair naturally is also just about being quietly true to oneself.


For me, it's not that black is beautiful. It's that white is not the only thing that is beautiful. In her book Sisters of the Yam: Black Women and Self Recovery, bell hooks talked of a specific black child's desire for long, blond hair. The writer encouraged the mother to examine her own attitudes about skin colour, hair texture and how she had constructed her own body image.


All youngsters question issues of identity and look at themselves in new ways. As a member of a group targeted by racism, it is natural for black youngsters to examine and seek racial identity earlier than others. It is perhaps also natural for them to try to resist the stereotypes and establish new definitions and alternative images of themselves.


A black child's "hair choice" may not necessarily be rooted in shame and sadness; a woman's choice for straight hair is not necessarily a sign of internalised oppression. But when most women are doing it, it reinforces the idea to an observant youngster that straight is better. If the strong, positive and uncompromising images young people seek are missing, what choices do we suppose they will make?



Glenor Roberts trabalha com jovens, crianças e famílias.


Contato: glenor.roberts@googlemail.com



2 comentários:

  1. Marco Túlio, o seu texto é profundamente interessante e muito bem escrito. Parabéns. Você tem razão. As outras protagonistas de novela sofrem porque lhe fizeram algo injustamente. É um sofrimento sem culpa. Essa Helena teoricamente trouxe o sofrimenteo pra si mesma, dai a culpa. O discurso anti-aborto que a Globo vem fazendo nessa novela é vergonhoso. Não há nenhum grão de imparcialidade ali. Eles estão dizendo abertamente: o aborto é errado. Ao mesmo tempo em que os cabelos de Helena estão livres e soltos, ela está nas amarras do machismo. É dona dos cabelos, mas não do próprio corpo. Essa não é mesmo uma protagonista como qualquer outra. E não tenho dúvidas de que ela está perdendo lugar para a branca, bela, inocente e positiva Aline Morais. Pense comigo. A Helena é madura, liberal, inteligente e independente e negra. Tudo que foge do padrão estabelecido pra mulher perfeita. rs rs. A Aline morais é branca, dependente agora que está numa cadeira de rodas, doce (a ponto de ser bobinha) e otimista (ao contrário de inteligente ..rs). Ela é a heroína que o telespectador da globo quer. Ela é como qualquer mulher que tenha se dado bem no Big Brother. rs rs. Não é inteligente como a Helena, mas tem um grande coração. É submissa, doce como uma mulher deve ser, e ainda é branca. O Maneco nao deu chance pra Tais nessa novela. Negra, inteligente e fez um aborto. rs rs. Acho que não foi inconsciente, mas a Tais está quase que concorrendo pra vilão não-anunciada nessa novela. O que é terrível e me deixa completamente frustrada! O padrão da mulher ideal vai muito além dos cabelos lisos, é pior ainda. Ela deve ser dependente (helpless), doce (quase maternal) e não pode ser muito inteligente. Gente inteligente é sempre vilão na novela, já viu? E no Big brother também! rs rs rs rs.

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  2. Sobre o segundo texto, igualmente relevante e muito muito bonito, gostaria de dividir uma experiência pessoal. O meu cabelo não era liso na minha adolescência. Foi se alisando com muitos processos que fiz nesses últimos 10 anos. Eu me lembro de quando eu quis cabelo liso. Era adolescente , na sétima série e um menino disse que meu cabelo era feio. Nunca mais tive cabelo encaracolado. rs rs. ESse menino provavelmente não sabe de onde vinha essa sua opinião. Imagino que seja muito difícil pra mulher negra assumir seu cabelo natural, pois a mulher tem toda uma bagagem diferente de preocupações com o corpo que o homem as vezes nao tem. O padrão diz que a mulher deve ser bela, e não inteligente.rs rs. Primeiro bela, depois o resto. Logo, a mulher negra que assume o cabelo pode preocupar-se com a rejeição por parte de seu parceiro/parceira. Para um homem negro a coisa é bem diferente do que para uma mulher negra. Tomara que, como você afirmou, essa Helena faça uma diferença e mais brasileiras sintam-se confortáveis usando seus belos cabelos naturais, e sentindo-se bonitas.
    : )

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