O BONDE DE UMA VIDA CHAMADA DESEJO
Marco Túlio de Urzêda Freitas
Vida e desejo. Palavras bonitas, não? Sim, bonitas e ... um tanto polêmicas. Mas, será que é possível conceber uma sem a outra? Sinceramente, acho que não. E o engraçado é que quando li pela primeira vez Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire) não me dei conta de que alí estava uma bela história de como nossas vidas operam contra e, ao mesmo tempo, a favor do desejo.
Na verdade, desejamos o tempo todo. A cada instante, é um desejo diferente. Desejamos um abraço de amigo/a, um beijo qualquer, um aperto de mão. Desejamos um trabalho, boas horas de sono, assitir televisão. Claro, como seres humanos, desejamos também o toque, o sentimento, o sexo. Eu diria que ... somos desejo, ainda que às vezes timidamente. Em outras palavras, desejamos porque estamos vivos/as. Assim, o desejo se consolida como parte da vida. Mas tudo bem, não estou dizendo que o amor não existe. Não é isso! Só acho que todo amor, por mais puro que seja, não abre mão do desejo.
Como seres autênticos, desejamos de formas diferentes. Na peça Um Bonde Chamado Desejo, por exemplo, vemos que o desejo se manifesta sob diversas perspectivas. Isso acontece porque as pessoas não compartilham as mesmas experiências de vida. Apesar de irmãs, Stella e Blanche Dubois são duas mulheres distintas. Stanley Kowalski, por sua vez, em muitos aspectos se distancia da figura de outros personagens da peça. Conclusão: pessoas diferentes, desejos diferentes. Para começar, homens e mulheres não são criados/as para desejar do mesmo jeito. Por isso, quando há uma transgressão de desejo, há também uma consequência. No caso da personagem Blanche, que não se atreveu apenas a sentir, mas expressar os seus desejos ... dois castigos: a loucura e a solidão.
O desejo sempre será um entrave na vida de quem o assume, principalmente quando se trata de um desejo-tabu (o que, cá entre nós, não passa de uma redundância, pois o desejo em si já se afirma como tabu). Certa vez, uma aluna disse que o que Blanche sofreu está no passado, que as mulheres de hoje não sofrem mais esse tipo de preconceito. Será mesmo? Na realidade, tenho certeza que não! Não mesmo. Tanto que quando me proponho a olhar minhas amigas, minhas primas e vizinhas, o que mais vejo são mulheres tendo que ocultar os seus desejos para não serem tarjadas como "aquelas perdidas da sociedade".
O que se espera da mulher dita pós-moderna ou contemporânea, em termos de desejo, é praticamente o mesmo que se esperava nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta. Poucas coisas mudaram em relação a isso. A imagem feminia ainda continua sublime, profética e dessexualizada; diferentemente da do homem, que para provar que é homem (ou "macho"), deve mostrar a todos/as que é um poço de desejos. Caso contrário, enfim, sabemos o que acontece. Se não for "homem de verdade", seus desejos devem permanecer no vazio, no silêncio, fadados à completa repressão. Coisas da vida! Coisas de uma sociedade que não consegue viver sem o famoso "jogo das hierarquias".
Me lembro muito bem da famosa frase de Blanche Dubois: "Sempre confiei na bondade dos desconhecidos". Hoje, percebo que todos/as nós temos um pouco disso, de Blanche, de sempre confiar na bondade dos desconhecidos. Geralmente nos preocupamos muito com o que os outros vão pensar de nós, de nossas ações, de nossas experiências, de nossos desejos. E atenção para um detalhe: esses outros são pessoas que, na maioria das vezes, nem conhecemos. Como explicar, então, essa dependência, essa necessidade de aprovação? Penso que o que nos falta é uma melhor compreensão do que sentimos e do que precisamos para sermos felizes. Nos falta assumir que somos desejo e que por isso, se estamos vivos/as, desejamos o tempo todo.
De fato, não acredito que pecamos ao desejar, a menos que tomemos a voz dos outros como a voz de Deus. O desejo faz parte de nós, de nossa rotina de trabalho, de nossos estudos, de nossa vida familiar, de nossas reflexões. O desejo reflete parte do/s nosso/s significado/s. Para Nelson Rodrigues, a única coisa que dura além da vida e da morte é o amor. Eu prefiro acreditar que o mais importante em nossas vidas é o desejo que o ato de amar nos proporciona. Por isso, vivamos a vida! Celebremos o toque. Entremos de corpo e alma no bonde dessa vida chamada desejo. Por fim, desejemos à vontade, sem medo e de coração aberto.
Cena do filme Uma Rua Chamada Pecado (1951), de Elia Kazan